São Paulo, sexta-feira, 19 de janeiro de 2007
TENDÊNCIAS/DEBATES
Os acidentes na engenharia brasileira
ALBERTO SAYÃO
Não há obra 100% segura. A questão é: qual o nível de risco aceitável? Quanto a sociedade aceita arriscar para economizar recursos?
NAS DUAS primeiras semanas de 2007, o país vivenciou acidentes com conseqüências trágicas que marcam a engenharia nacional: escorregamentos na região serrana do Rio de Janeiro, ruptura de barragem de rejeitos em Minas Gerais e desabamento na linha 4 do metrô de São Paulo. A chuva tem sido apontada como a causa dessas tragédias por administradores, políticos e outros entrevistados. Rapidamente, especialistas disseram que não é tão simples assim. As causas são mais complexas e precisam ser discutidas abertamente.
Algumas questões têm sido recorrentes. A capacidade dos engenheiros brasileiros para enfrentar as chuvas, tão usuais nesta época, tem sido questionada. A boa engenharia considera sempre os efeitos da chuva, da água ou da saturação dos terrenos. Obras próximas a um rio ou sob ele são perfeitamente possíveis. Exigem maiores cuidados e conhecimentos, mas a chuva não pode ser a culpada.
Outra questão freqüente: as obras atuais são seguras? Não há obra 100% segura. Obras de engenharia sempre trazem algum risco. Porém, para reduzir o grau de risco, o custo da obra aumenta. Como, aliás, ocorre na medicina ou na aviação, por exemplo. A questão, então, é: qual o nível de risco aceitável? Quanto a sociedade aceita arriscar para economizar recursos?
Ninguém quer voar em um avião velho ou ser operado por um médico qualquer. Mas, nas obras de engenharia, já não é usual gastar o necessário para minimizar os riscos. Ao contrário, faz-se economia em investigações, ensaios, projetos, consultoria, instrumentação e fiscalização. Tudo se resume ao melhor balanceamento entre riscos e custos.
Outra pergunta usual: os acidentes mencionados poderiam ter sido evitados? Tecnicamente, sim. Num acidente, há duas alternativas: ou houve falha técnica (projeto, construção, fiscalização) ou a obra foi concebida com um nível de risco inadequado.
Outra questão: as obras de engenharia têm sido atualmente contratadas por preço "fechado","turn key" ou por PPPs (parcerias público-privadas). São modalidades adequadas? A resposta é sujeita a debates. Em muitos desses contratos, o projeto, a execução, o monitoramento e a fiscalização da obra não são necessariamente independentes, pois podem estar ligados a um mesmo grupo. Apesar de terem vantagens de prazo e custo, essas modalidades reduzem, em tese, as atividades de verificação, questionamento e reparo de eventuais falhas.
A prática das licitações vem também mudando. Muitas estipulam um valor máximo ou são decididas pelo menor preço. Mas nem sempre o "menor preço" significa o "melhor preço", pois pode resultar em redução da qualidade e aumento do risco.
Infelizmente, isso tem trazido uma desvalorização gradual da engenharia no país. O resultado é a extinção de laboratórios técnicos, o desmembramento das empresas de projeto, a fragilização da consultoria, o desprezo pelas universidades e o desmonte das equipes técnicas dos órgãos governamentais no Brasil. Projeto, consultoria e investigação têm custos irrelevantes quando comparados com o custo total das obras e são decisivos para a otimização dos investimentos.
Por outro lado, as seguradoras vêm se tornando cada vez mais importantes. Um dos principais pontos de discussão passou a ser o valor do seguro. Especialistas na avaliação dos riscos envolvidos em uma obra são mais valorizados do que engenheiros.
Os recentes acidentes têm alguma ligação com tudo isso? A barragem que enlameou Minas e Rio pode ser um exemplo. A barragem estava pronta: teriam sido necessárias mais inspeções, mais investigações, mais consultoria, mais instrumentação para evitar a catástrofe ambiental? E no metrô, que estava em estágio avançado da construção, algo poderia ter sido feito para evitar a tragédia?
E no caso dos escorregamentos recentes nas encostas da região serrana do Rio, os administradores locais foram previdentes? Um encontro técnico, em final de novembro, foi realizado pela ABMS em Friburgo, e vários problemas e soluções para as encostas da região foram debatidos durante dois dias. Todos os prefeitos e secretários de obra da região foram convidados com antecedência. No entanto, somente o secretário do município de Cantagalo compareceu e participou. É mais fácil culpar a chuva...
Esses problemas têm sido discutidos em congressos entre os especialistas geotécnicos do país. Mas a responsabilidade passa, também, pelo poder público, que precisa atuar mais ativamente para o aperfeiçoamento das licitações e contratações. E para o resgate da valorização dos profissionais da nossa engenharia, a qual já foi motivo de orgulho e ainda é reconhecida e exaltada no exterior.
O Brasil tem capacitação técnica e tecnológica que em nada fica a dever a nenhum país. Isso não significa que acidentes deixarão de ocorrer. Significa que, dadas as devidas condições, a engenharia pode e deve minimizar a freqüência e as conseqüências desses acidentes. A sociedade aguarda respostas, explicações e ações que virão com os laudos técnicos sobre os acidentes. Mas não pode ficar temendo a chuva ou os detalhes da geologia.
ALBERTO SAYÃO, engenheiro, doutor em engenharia civil pela University of British Columbia (Canadá), é professor da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e presidente da ABMS (Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica).
abms@ipt.br